Autora: Deborah da Silva Xavier Alves Pereira
Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestranda de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade no CPDA/UFRRJ.
O trabalho está baseado no TCC intitulado “Insegurança alimentar no Haiti: uma análise sobre os aspectos históricos, políticos, econômicos e ambientais”, orientado pela professora Fabrina Furtado.
Resumo: A história do Haiti, marcada por séculos de colonização, escravidão e luta pela independência, reflete as complexas dinâmicas do colonialismo e da colonialidade. O texto aborda, brevemente, como essas questões influenciam a soberania alimentar do país.
Palavras Chaves: Haiti, colonialidade, soberania alimentar.
Introdução
O primeiro domínio do território haitiano iniciou-se sob a Espanha, em meados do século XVI. No entanto, em 1697, a França adquiriu parte da chamada Ilha de Hispaniola, que passou a ser chamada de Saint-Domingue (atual Haiti), e construiu uma economia baseada na agricultura de latifúndio voltada à exportação. No final do século XVIII, as tensões na colônia passaram a acontecer com mais frequência, pois os escravizados reivindicavam direitos e poder para sua classe. Em 1789 iniciou-se a Revolução Francesa, que marcou a história da humanidade por começar um processo que levou a noção da universalização dos direitos sociais e das liberdades individuais.
Devido a recusa da elite branca de Saint-Domingue em cumprir as normas que surgiram da Assembleia Nacional de Paris, que incluia o direito de participação política aos negros livres e a todos que pagavam impostos, a ordem civil foi afetada por revoltas dos escravizados (SILVA; PERROTO, 2018). O território estava entre as lideranças mundiais de produção de culturas comerciais como açúcar, café e algodão, sendo a principal fornecedora dos franceses. Para ocupar essa posição, o trabalho produzido na ilha foi construído às custas da exploração dos povos negros submetidos ao regime da escravidão.
Nesse cenário, em 1791, teve início a Revolução Haitiana e, em 1794, o movimento já havia conquistado a emancipação da colônia. Um dos grandes líderes da revolução foi Toussaint L’Ouverture, um homem negro que nasceu escravizado e conquistou sua liberdade na vida adulta. Toussaint liderou os negros da ilha em uma vitória decisiva sobre as forças europeias, aboliu a escravidão e elaborou uma nova constituição, estabelecendo um novo ordenamento político para a colônia. Contudo, após a captura de Toussaint pelas forças francesas, quem assumiu a liderança foi Jean-Jacques Dessalines, um dos principais comandantes da revolução. Dessalines continuou a luta pela independência e, após a derrota definitiva das tropas francesas em dezembro de 1803, proclamou a independência do Haiti em 1º de janeiro de 1804. Ele renomeou a ilha com seu nome original, Haiti, em homenagem aos Taínos, povo nativo exterminado pelos colonizadores espanhóis. Dessalines se tornou o primeiro imperador do novo país, simbolizando não apenas a liberdade conquistada, mas também o rompimento definitivo com o colonialismo e a escravidão.
A independência do Haiti foi vista como uma ameaça aos interesses políticos e econômicos das potências europeias, porque temiam que isso pudesse estimular outras colônias a lutar pela emancipação. Com isso, a França foi o primeiro país a negar o reconhecimento imediato da independência do Haiti, voltando atrás somente em 1825 quando reconheceu a independência do país caribenho sob a condição de que lhe fosse paga uma indenização no valor de 150 mil francos (SANTOS, 2018). Esse acordo imposto ao Haiti gerou uma dívida considerada pelo povo haitiano como ilegal e ilegítima, afetando o contexto político e econômico do país. Atualmente, após duzentos anos da independência do Haiti, o país, atravessado por instabilidades políticas, econômicas e intervenções externas tem uma economia devastada e uma população excluída de direitos básicos, como a alimentação.
A luta pela soberania alimentar
De acordo com Silva e Oliveira (2021), quase dois terços dos haitianos sobrevivem da agricultura de subsistência voltada para o mercado interno, alimentando tanto a população rural quanto a urbana, produzindo alimentos básicos e fazendo da agricultura a principal base econômica do país. Aproximadamente 78% dos lares estão envolvidos, de alguma forma, em atividades agrícolas. No entanto, o setor, de fundamental importância para o país, sofreu fortes impactos com a agenda neoliberal, ou seja, a liberalização da economia, das finanças e do comércio, privatização, a flexibilização de direitos, e a retirada do Estado da promoção do bem-estar social, entre outras questões (HARVEY, 2005). A adoção de medidas liberais impactou a economia do país e as principais causas da extrema pobreza. O Haiti sofreu com a redução da produção nacional dos produtos agrícolas, que junto com o fato de o Estado ter sido retirado da regulação da produção, afetou a segurança alimentar da população. Com o neoliberalismo e a consequente dependência do país ao mercado externo para abastecimento alimentar, o Haiti perdeu sua soberania alimentar.
O debate acerca da segurança alimentar é discutido no contexto internacional juntamente com o princípio da soberania alimentar (MALUF; MENEZES, 2001). Segurança alimentar significa a garantia de alimentos seguros, nutritivos, em quantidade suficiente e de modo permanente. O conceito de soberania alimentar é multidimensional, já que abrange várias questões, sobre produção de alimento, demarcação e reconhecimento de terras originárias e tradicionais, garantia aos povos de direito sobre seus campos, florestas, águas e cidades. É o direito de produzir de acordo com suas próprias políticas agrárias, adaptação social, ecológica, econômica e cultural ao meio local e regional, indo contra ao modelo hegemônico imposto, preservando a biodiversidade e utilizando práticas produtivas sustentáveis.
Para Cosmos e Manrique (2020), o ato de comer não deve ser entendido apenas como a contemplação de necessidades fisiológicas, existem outras questões por trás da alimentação. Comer é uma atividade social que vai desde a escolha dos cultivos e criações de animais domésticos, passando pelo preparo e transformação, até o ato de comer em si. É um processo que produz cultura. O mundo-moderno/colonial fez com que a terra e o alimento fossem manipulados de forma econômica, racista, patriarcal e monocultural. Ou seja, elementos essenciais para a vida sendo controlados de maneira a pensar somente no capital.
O projeto da fome foi implantado na colonização pelo sistema-mundo moderno/colonial e dura até os dias de hoje através da colonialidade do poder, do saber(epistemológica) e do ser (ontológica). Aníbal Quijano (2005) contribui para a discussão sobre colonialidade a partir do conceito de “colonialidade do poder”, que pode ser entendido como um conjunto de práticas de subjetivação, mecanismos de poder, dominação e discriminação que se produziram a partir da estrutura colonial. Dessa forma, a decisão sobre quem pode se alimentar, produzir alimento, ciência sobre o alimento e quem passa fome no país, é preestabelecida pelo Estado, já que segue a lógica imposta pelo projeto de colonização do território e dos corpos não europeus. (BOTELHO, 2021).
A colonialidade, que vai encontrando novas formas de existir ao longo do tempo, é um dos principais fatores que perpetuam o cenário da fome no Haiti e no mundo. A modernidade colonial é constituída pelas práticas impostas no passado colonial através da monocultura, do latifúndio, da fome, da insegurança alimentar, da desnutrição, do patriarcado, do racismo e do genocídio dos povos. Portanto, a modernidade e a colonização são interligadas pela colonialidade.
A revolução haitiana derrubou a ideia defendida na época pelas grandes potências, que diziam que as populações negras não conseguiam se organizar por si só. O caso do Haiti é único, pois foi a primeira colônia latino-americana a conseguir a independência e a abolição da escravidão, tendo os escravizados como lideres do processo de libertação de seu país e de si mesmo. Esse feito, considerado uma afronta pelas potências coloniais, permanece uma ferida aberta, sendo um dos principais motivos para o Haiti ainda ser mantido em uma situação de subordinação até os dias de hoje. Apesar da persistência de um projeto de fome, a luta decolonial pela soberania alimentar resiste, desafiando as limitações e contradições do sistema global, questionando a negação do Direito Humano à Terra e, consequentemente, o Direito Humano à Soberania Alimentar.
Referências
COSMOS BENVEGNÚ, V.; MANRIQUE GARCÍA, D. Colonialidade alimentar? Alguns apontamentos para reflexão. Mundo amazónico, v. 11, n. 1, p. 39–56, 2020.
HARVEY, DAVID. O neoliberalismo: História e implicações. Edições Loyola, 2005.
MALUF, Renato S.; MENEZES, Francisco Caderno Segurança Alimentar. 2001.
Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Renato-Maluf-2/publication/266884132_Caderno_%27
Seguranca_Alimentar. Acesso em: 17/11/2022.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires. Editora: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005, 117-142.
SANTOS, Larissa dos. A revolução haitiana e os ecos de uma insurreição negra. 2018. 25. Dissertação – ECA-USP, SP, 2018.
SILVA, Karine de Souza; PEROTTO, Luiza Lazzaron Noronha. A zona do não-ser do direito internacional: os povos negros e a revolução haitiana, 2018. Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas, Santo Ângelo, v. 18, n° 32, p. 125-153, set./dez. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v18i32.2838. Acesso em: 03/12/2022.
SILVA, Robson; OLIVEIRA, Walter. Caminhos para o desenvolvimento do Haiti. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2021/05/caminhos-para-o-desenvolvimento-do-haiti.shtml. Acesso em: 30 maio 2023.